Este artigo não quer soar pretensioso, mas passear pelas entrelinhas do jornalismo. Chegou às bancas no último sábado a picante edição da Veja sobre o “caso BBB”. E a revista do Grupo Abril agiu como se espera dela. Aproveitou o assunto que inflamou e chocou o Brasil para dar a ele uma abordagem polêmica que fugisse do fato em si, que na verdade nem existiu. A apelativa capa estampa uma bela bunda e banca a discussão sobre privacidade. “Passou dos limites?”, é o questionamento.

À primeira vista, a mensagem dá esperança. Afirma que, felizmente, há salvação na efervescente era em que a ameaça à privacidade é cada vez maior. Faz criar, mesmo sem folhear, a ideia de que por mais que a mídia empurre baixaria goela abaixo do brasileiro, o público é quem define se engole ou não. É um aperitivo para a tese de que ele tem total condição de se autorregular, e pronto. A Veja deu a entender na capa que faria uma análise diferente e mais ampla. Só deu ao entender.

A pauta foi pontual, bem escolhida, mas basta deslizar os olhos pelo texto “A casa caiu” para notar seus outros objetivos. Carregada de opinião, a reportagem se desenrola entre as páginas 85 e 91 apoiada em algumas fontes anônimas e armada de alfinetadas ao BBB, todas justificadas, e à Record. “Santa ironia: a emissora dos bispos da Igreja Universal do Reino de Deus, lar do assistencialismo apelativo (…) desancava o baixo nível da líder de audiência. Logo quem”, ataca sobre o aproveitamento editorial em torno do fato.

Alguns panoramas interessantes foram abordados. A revista revelou o cenário de pressão a que os “brothers” e “sisters” são submetidos. Um psiquiatra declara que ouviu de Boninho, diretor do programa, que ele estava pegando leve demais com os participantes; ao invés de acalmá-los, a orientação da Globo é para deixá-los mais nervosos, diz o entrevistado. Apesar de esdrúxulo, é disso que programas como este se valem: quanto mais recursos apelativos, num show em que pessoas enjauladas são vigiadas por um país inteiro, maior a probabilidade de dar audiência. E os anunciantes adoram! Ao criticar esta fórmula abusiva, portanto, a Veja acertou.

Só que em paralelo ao boicote contra a má qualidade, faltou lembrar aos leitores que as emissoras só funcionam porque têm concessão dada pelo governo federal. O aval para para a transmissão de conteúdo é concedido com o consentimento de que as normas do artigo 221, do capítulo V da Comunicação Social, sejam cumpridas.

Leia abaixo os princípios e veja se bate com a realidade:

“I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;

II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que
objetive sua divulgação;

III – regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais
estabelecidos em lei;

IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.”

Não, realmente não bate. Principalmente com o que prega o artigo IV. Se a análise passa pela apelação do BBB, por que não tocar nesta ferida de forma construtiva? Por que não falar sobre o que pode ser feito para minimizar a baixaria? Talvez a resposta esteja nas últimas linhas do texto. Além de ignorar a cobrança de diretrizes educativas e culturais como estas, a Veja pendeu para o lado político. Fez jus a sua história editorial, marcada por defesas que por vezes fogem do rigor jornalístico.

Ao classificar como “absurda” a hipótese aventada pelo Ministério de Comunicações, de rever a concessão da Globo, a revista usa a expressiva rejeição da sociedade ao “caso BBB” para pregar contra a regulamentação da mídia. Coincidentemente o projeto é proposto pelo PT, seu eterno algoz, e já rendeu duras críticas ao que a publicação considera ser censura.

Os ataques também atingem a classificação indicativa, interferência do governo para decidir a qual público o conteúdo é direcionado. Com isso, a Veja joga naturalmente para quem consome a informação, nós, o povo, a responsabilidade de avaliar o que pode ou não pode. O que constrói e o que segue destruindo nossas formações, independente da ação de terceiros quando o limite do bom senso é transposto. A mídia, então, escapa da responsabilidade social com leves arranhões.

“No momento em que o Supremo Tribunal Federal julga a legitimidade da classificação indicativa, intromissão indevida do estado na programação da TV, o BBB oferece exemplo cabal de que a própria sociedade, com reação espontânea dos cidadãos, é capaz de identificar e punir o abuso sem a tutela do estado”, conclui a revista.

O povo sabe julgar o que vê, mas é arriscado deixá-lo à mercê da lógica “audiência a qualquer custo”. Num tempo em que os programas se digladiam em busca do sucesso, para estar na boca do povo e repercutir nas redes sociais, o que esperar das mentes criativas de BBBs, Ratinhos, Pânicos, Fazendas e Gugus? É uma boa – e preocupante- forma de exercitar a imaginação.

Por Marcelo Gripa